.: o salto :.

Ele era daquele tipo de homem que considera a recusa da cumplicidade como uma condição de erotismo.

Ela fora atingida em cheio (nunca soube ao certo o que amava naquele homem, fora a relação que ele propunha nas entrelinhas), mas acabou por sobreviver e acreditava realmente que pudesse tirar algum proveito daquele deserto.

Lidar com a imensa e oculta solidão de contar somente consigo mesma ressecava e empobrecia cada vez mais sua superfície de contato com a vida. O cabelo amarfanhou, as unhas escureceram e os dentes - últimos resquícios de dignidade - escapavam-lhe pela boca.

O tempo havia passado e toda aquela muralha que havia eficazmente construído com o intuito de fortaleza simplesmente a afastou das possibilidades do além-jardim. O verde florido do mundo externo ousava roçar a base de seus muros, mas nunca mais pôde hidratar suas raízes.

Pensava secretamente que quando não se pode contar com quem ama, não há mais ninguém a quem recorrer, mas... Afinal, o que é o amor? E se fosse apenas uma bandeira rota que insistem em levantar como isenção da responsabilidade de assumir a sua vida por completo? Não se perdoaria em repetir essa fraqueza. Ela era a fortaleza, e morreria sendo.

Até o dia em que um (des)conhecido fez uma gentileza qualquer e a ela atinou que passou anos de sua vida co-existindo com o espectro de sua falecida idéia de vida.

Uma delicadeza qualquer, que passaria batida em qualquer outra situação, com qualquer outra pessoa. Mas era ela. E do alto de sua torre seca, subitamente nasceu a deliciosa vontade de pular, de se deixar morrer, pelo menos uma vez.

Morrer para renascer, para tornar-se qualquer outra forma. Para morrer quantas vezes necessário, e nunca mais embalsamar-se.

Comentários

vida de herdeiro disse…
Sou fanático por aquela frase em que uma das personagens de "Todo sobre mi madre", do Almodóvar, diz: "Sempre dependi da bondade de estranhos". Um dos próximos temas que quero abordar é justamente o amor como mortalha, cárcere.
Bacana os dois últimos posts.
Lara disse…
Morrer para renascer, para tornar-se qualquer outra forma. Para morrer quantas vezes necessário, e nunca mais embalsamar-se.

A morte é só o começo de outra vida...Lindo!
Bjos e escreva mais e mais essas delícias de textos.