resolveu sumir. isso mesmo. sumir do mundo e da realidade que há pelo menos 20 anos chamava de sua. o mundo lhe vinha somente através dos jornais velhos que os vizinhos descartavam, e do barulho da rua.

nunca parou pra pensar no passado e de fato sentia que não tinha absolutamente qualquer vínculo com os dispositivos que usava para reconhecer suas emoções.

saiu em um dia chuvoso, depois de muito tempo. buscou um bar, um rosto ou qualquer momento que significasse qualquer coisa. a mesma cenografia, e apesar de os rostos serem outros, continham os mesmos olhares apáticos. apáticos como o seu.

correndo pelas ruas, escorregou no meio fio e sentiu claramente o ódio cegar-lhe e entalar em sua garganta. gritou e esmurrou um muro até cansar. enquanto vociferava, mordeu o lábio inferior. estava vivo, era óbvio, ao ver o sangue escorrer pela camisa branca. mas não sentia nada, a dor interior era infinitamente maior do que qualquer rasgo em sua carcaça.

- porra!

arfando, se deixou tomar pelo vazio, e as coisas voltaram a ser como era: a velha porta de madeira com vidro floreado, o chão surrado e pintado das velhas ceras vermelhas. chegou cambaleante até o carro coberto das carcaças adocicadas de flores amarelas.

o espaço começou a parecer impessoal. de alguma forma, pareceu surpresa quando o cachorro lhe recebeu latindo. sempre imaginou que sua vida seria em outro lugar, e tudo que havia reunido em sua vida era somente consequência daquela espera.

fitou a porta do lugar que chamava de casa, e viu os esperançosos anos se transformarem efêmeros momentos, nem sempre bons, nem totalmente ruins. era aquele oco. sempre.

despiu-se no corredor, a mancha de sangue da caminha marcando o chão até seu quarto. vestiu uma roupa florida que considerava absurdamente ridícula. agarrou uma garrafa de vinho vagabundo que ganhou no último natal e tomou em goladas imensas, como se estivesse com toda a sede do mundo. o doce agressivo do vinho aguado e o álcool imobilizavam aos poucos suas pernas, e o desejo de fugir não passava de uma idéia distante.

acordou com uma dor de cabeça lancinante, foi até o corredor, pegou o jornal do dia anterior e se segurou para não gargalhar de desespero.

Comentários